terça-feira, 24 de novembro de 2009

Misericordiouso



[Cortei] (...) Daí quando dizemos que alguém é cordial, queremos dizer que suas atitudes provêm do coração. A palavra não existia entre os antigos, mas desenvolveu-se na Idade Média. Concordar com alguém é partilhar do mesmo coração, isto é, das mesmas idéias e sentimentos; discordar, por sua vez, é o movimento contrário. Os dois verbos já existiam em latim: concordare/discordare. Quantos pares de palavras assim não se formaram a partir desse prefixo com- que reúne, concilia, congrega e dis- que espalha, dissipa, dispersa: convergir / divergir, compor / dispor, contribuir / distribuir etc. Quando todos concordam, há concórdia, quando todos discordam, há discórdia. Mesmo em assuntos de gramática, quando se fala da concordância nominal, ali está, no fundo, a compatibilidade entre as palavras, como se elas tivessem um coração.

No latim ainda havia outras palavras parecidas que, por acaso, não foram ressuscitadas pelos românticos: vecordia era a ausência de coração, a loucura, a insensatez; socordia (ou secordia), o afastar-se do coração, a covardia, a indolência, a apatia. Ao contrário dessa última palavra, um adjetivo *coraticum, "próprio do coração", desenvolveu, em francês, a palavra courage, que veio para o português sob a forma coragem.

Já a palavra misericórdia sobrevive ainda hoje: a primeira parte da composição é a palavra miser, "pobre, miserável, lamentável", ou seja, ter misericórdia é ter o coração contrito. O alemão, imitando essa palavra, criou a palavra Barmherzigkeit, composta de erbarmen "ter piedade", Herz "coração" e os sufixos formadores de abstratos femininos -ig+keit.

Ir para perto do coração de alguém, ou seja, das idéias e dos sentimentos do outro, fazendo, assim, desaparecer as diferenças, é fazer um acordo. Quem concorda, aliás, é cordato. Em latim, cordatus é, no entanto, quem tem coração, melhor dizendo, raciocínio: é quem é prudente, sábio, sagaz.

Um acordo entre as notas musicais é um acorde, palavra que veio do francês accord. Dessa palavra formou-se a palavra alemã Akkordion, que, via francês, accordéon, chegou ao português como acordeom.

Trazer de volta ao coração lembranças perdidas é recordar. Em espanhol, diz-se, no entanto, para este sentido, acordar. Já o português acordar vem de acordado, palavra que no século 13 tinha o mesmo sentido do cordatus, ou seja, quem tem o juízo aguçado. Só está plenamente acordado quem tem a razão em pleno funcionamento, assim como esperto e despertar tem uma semelhança formal.

A palavra latina cor, sob a forma antiga *cord, encontra parentes mais antigos em outras línguas: no germânico se dizia *hert (gótico hairto, inglês heart, alemão Herz, holandês hart, sueco hjärta, islandês hjarta, norueguês e dinamarquês hjerte); em eslavo, *serd (russo serdce, polonês serce, tcheco e eslovaco srdce, esloveno e croata srce, búlgaro sarce); no grego *kard (antigo kardía, moderno kardiá), o armênio sirt, o lituano sirdis, o letão sirds e línguas tão antigas quanto o hitita karts e o sânscrito hrd remontam a um indo-europeu *krd, *kerd, mostrando, dessa forma, quão longe uma palavra pode penetrar no passado, da mesma forma que a profusão de idéias que se lhe associam mostram o quão vivas eram e ainda são as línguas. O ditado está errado: nem tudo que está longe dos nossos olhos, está, portanto, longe do coração. (Mário Eduardo Viaro)

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