quarta-feira, 1 de julho de 2009

O homem segundo Zaratustra

"O homem é corda distendida entre o animal e o super-homem: uma corda sobre um abismo; travessia perigosa, temerário caminhar, perigoso olhar para trás, perigoso tremer e parar."
"A grandeza do homem é ser ele uma ponte, e não uma meta; o que se pode amar no homem é ser ele uma transição e um ocaso."

Nietzsche "Assim falou Zaratustra", 1883

A Busca da Fecalidade



A BUSCA DA FELICIDADE

Onde cheira a merda
cheira a ser.
O homem podia muito bem não cagar,
não abrir a bolsa anal
mas preferiu cagar
assim como preferiu viver
em vez de aceitar viver morto.

Pois para não fazer cocô
teria que consentir em
não ser,
mas ele não foi capaz de se decidir a perder o ser,
ou seja, a morrer vivo.

Existe no ser
algo particularmente tentador para o homem
algo quem vem a ser justamente

O COCÔ
(aqui rugido)

Para existir basta abandonar-se ao ser
mas para viver
é preciso ser alguém
e para ser alguém
é preciso ter um OSSO,
é preciso não ter medo de mostrar o osso
e arriscar-se a perder a carne.

O homem sempre preferir a carne
à terra dos ossos.
Como só havia terra e madeira de ossos
ele viu-se obrigado a ganhar sua carne,
só havia ferro e fogo
e nenhuma merda
e o homem teve medo de perder a merda
ou antes desejou a merda
e para ela sacrificou o sangue.

Para ter merda,
ou seja, carne
onde só havia sangue
e um terreno baldio de ossos
onde não havia mais nada para ganhar
mas apenas algo para perder, a vida.

o reche modo
to edire
de za
tau dari
do padera coco

Então o homem recuou e fugiu.

E então os animais o devoraram.

Não foi uma violação,
ele prestou-se ao obsceno repasto.

Ele gostou disso
e também aprendeu
a agir como animal
e a comer seu rato
delicadamente.

E de onde vem essa sórdida abjeção?

Do fato de o mundo ainda não estar formado
ou de o homem ter apenas uma vaga idéia do que seja o mundo
querendo conservá-la eternamente?

Deve-se ao fato de o homem
ter um belo dia
detido
a idéia do mundo.

Dois caminhos estavam diante dele:
o do infinito de fora,
o do ínfimo de dentro.

E ele escolheu o ínfimo de dentro
onde basta espremer
o pâncreas,
a língua,
o ânus
ou a glande.

E deus, o próprio deus espremeu o movimento.

É deus um ser?
Se o for, é merda.
Se não o for,
não é.
Ora, ele não existe
a não ser como vazio que avança com todas as suas formas
cuja mais perfeita imagem
é o avanço de um incalculável número de piolhos.

"O Sr. está louco, Sr. Artaud? E então a missa?"

Eu renego o batismo e a missa.
Não existe ato humano
no plano erótico interno
que seja mais pernicioso que a descida
do pretenso jesus-cristo
nos altares.

Ninguém me acredita
e posso ver o público dando de ombros
mas esse tal cristo é aquele que
diante do percevejo deus
aceitou viver sem corpo
quando uma multidão
descendo da cruz
à qual deus pensou tê-los pregado há muito tempo,
se rebelava
e armada com ferros,
sangue,
fogo e ossos
avançava desafiando o Invisível
para acabar com o JULGAMENTO DE DEUS.

A QUESTÃO QUE SE COLOCA...

O que é grave
é sabermos
que atrás da ordem deste mundo
existe uma outra.

Que outra?

Não o sabemos.

O número e a ordem de suposições possíveis
neste campo
é precisamente
o infinito!

E que é o infinito?

Não o sabemos com certeza.

É uma palavra que usamos
para designar
a abertura
da nossa consciência
diante da possibilidade
desmedida,
inesgotável e desmedida.

E o que é a ciência?

Não o sabemos com certeza.

É o nada.

Um nada
que usamos
para designar
quando não sabermos alguma coisa
e de que forma
não o sabemos
e então
dizemos
consciência,
do lado da consciência
quando há cem mil outros lados.

E então?

Parece que a consciência
está ligada
em nós
ao desejo sexual
e à fome.

mas poderia
igualmente
não estar ligada
a eles.

Dizem,
é possível dizer,
há quem diga
que a consciência
é um apetite,
o apetite de viver:

e imediatamente
junto com o apetite de viver
o apetite da comida
imediatamente nos vem à mente;

como se não houvesse gente que come
sem o mínimo apetite;
e que tem fome.

Pois isso também
existe:
os que tem fome
sem apetite;

e então?

Então
o espaço do possível
foi-me apresentado
um dia
como um grande peido
que eu tivesse soltado;
mas nem o espaço
nem a possibilidade
eu sabia exatamente o que fossem,

nem sentia necessidade de pensar nisso,

eram palavras
inventadas para definir coisas
que existiam
diante da premente urgência
de uma necessidade:
suprimir a idéia,
a idéia e seu mito
e no lugar instaurar
a manifestação tonante
dessa necessidade explosiva:
dilatar o corpo da minha noite interior,
do nada interior
do meu eu

que é noite,
nada,
irreflexão,

mas que é explosiva afirmação
de que há
alguma coisa
para dar lugar:

meu corpo.

Mas como,
reduzir meu corpo
a um gás fétido?
Dizer que tenho um corpo
porque tenho um gás fétido
que se forma em mim?

Não sei
mas
sei que
o espaço,
o tempo,
a dimensão
o devir,
o futuro
o destino,
o ser,
o não-ser,
o eu,
o não-eu
nada são para mim;

mas há uma coisa
que é algo,
uma coisa
que é algo
e que sinto
por ela querer
SAIR:
a presença
da minha dor
do corpo,

a presença
ameaçadora
infatigável
do meu corpo;

e ainda que me pressionem com perguntas
e por mais que eu me esquive a elas
há um ponto
em que me vejo forçado
a dizer não,
NÃO

à negação;

e chego a esse ponto
quando me pressionam,
e me apertam
e me manipulam
até sair de mim
o alimento
e seu leite,

e então o que fica?

Fico eu sufocado;

e não sei que ação é essa
mas ao me pressionarem com perguntas
até a ausência
e a anulação
da pergunta
eles me pressionam
até sufocarem em mim
a idéia de um corpo
e de ser um corpo,

e foi então que senti o obsceno

e que
soltei um peido
de saturação
e de excesso
e de revolta
pela minha sufocação.

É que me pressionavam
ao meu corpo
e contra meu corpo

e foi então
que eu fiz tudo explodir
porque no meu corpo
não se toca nunca


ANTONIN ARTAUD - TRECHO DE "PARA ACABAR COM O JULGAMENTO DE DEUS"