Fui assistir “HOMEM QUE NÃO VIVE DA GLÓRIA DO PASSADO”, nova peça da Cia. Espaço em BRANCO, dirigida por João de Ricardo, e sai impressionado. Uma espetáculo para quem gosta de fazer e assistir teatro, uma proposta ousada, uma experiência teatral cativante. Não que o espetáculo seja perfeito ou não suscite polêmica. Muitos, talvez, rejeitem a estética e o conteúdo do trabalho. Outros vão adorar de paixão. O verdadeiro teatro é este mesmo, o que não deixa o espectador indiferente na cadeira, o que desperta entusiasmo e controvérsia, gente falando muito bem, gente abominando completamente. Salvo engano, foi o que aconteceu durante a primeira temporada.
Eu mesmo, antes de assistir a peça, já ouvira alguns comentários ácidos sobre o trabalho, gente indignada com o resultado cênico da experiência pilotada por João. Depois do espetáculo, ao cumprimentá-lo, senti que ele estava bagunçado com algumas manifestações violentamente contrarias. Não devia, pois há razões para isso, na minha opinião. Algumas características da cidade explicam parcialmente o repúdio a um trabalho muito sério e bem-vindo.
Porto Alegre é uma cidade conservadora. Com exceções de praxe, claro, gente que faz valer a pena viver aqui, parece que sempre estão nos cobrando atestado de bons antecedentes, enquadramento aos costumes médios do lugar. Sobressair na massa, parece, é ofensa pessoal. E nenhum teatro, nenhuma manifestação cultural está imune ao local onde é gerado. Há poucos dias, perplexo, acompanhei uma série de invectivas contra Nei Lisboa, por suas posturas em relação ao ranço na musica folclórica gaúcha. Caíram de pau em cima dele. E agora, por motivos confluentes, querem destruir o trabalho do João. Eu, que tento assistir o maior numero possível de espetáculos locais, posso garantir que, atualmente, há uma grande conformismo cênico norteando nossas estréias. Espetáculos que flertam descaradamente com a linguagem da televisão, a retirada estratégica de uma geração que durante muitos anos alimentou nossas temporadas com propostas provocantes, uma nova geração que, por isso mesmo, por ser nova, ainda procura espaço e afirmação – tudo isso, paradoxalmente, desemboca em alguns artistas transbordantes e inquietos, pois esses continuam a surgir, graças a Deus! João de Ricardo é o melhor exemplo do que eu falo. Há nele uma ânsia legítima de procurar sua identidade cênica, uma alma e artista inconformado com a caretice que marca nosso tempo, um excesso de quem ainda não domina completamente as ferramentas de sua criação teatral. Tudo isso não obscurece nem invalida sua trajetória, João é talentosíssimo diretor de teatro, o nome mais importante surgido em sua geração.
A cidade ainda vai ouvir falar muito dele. Muitos espetáculos ainda vão dar o que falar, encontrar resistência e narizes torcidos. Tomara que João não canse nem desista. Tomara que compreenda que todos os verdadeiros talentos, no seu tempo, pagam um preco alto para firmar sua personalidade e seu trabalho. Elis Regina, para mim a maior cantora brasileira de todos os tempos, durante anos foi acusada pelos críticos de ser uma cantora “fria”. Logo ela, a mais emocional das nossas estrelas. E muitos gaúchos adoravam falar mal de Elis, coisas estapafúrdias, maledicências de todo tipo. Eu ficava doido com isso, queria chutar o balde e as canelas dessa gente. Com a devida ressalva de que sei muito bem a diferença entre um e outro, é o que sempre acontece quando um nome começa a se impor na cena local.
O escorpião porto-alegrense tem um veneno abundante, é poderoso, mas o tempo é senhor da razão – todos sabemos. E é na perspectiva do tempo que o trabalho do João irá se impor e se firmar. Muitos artistas promissores começam a se repetir, perdem o fôlego, vendem a alma ao diabo. Mas aposto que o caminho de João é outro, é o caminho daqueles que vieram para ficar e contribuir para alavancar nosso gosto e depuração. Oxalá!
Luciano Alabarse
Diretor de Teatro e Coordenador Geral do Festival Internacional Porto Alegre em Cena
Jornal Usina do Porto
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Vanglorie-se: