quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Comentário escrito por Luciano Alabarse no jornal "Usina do Porto"

Fui assistir “HOMEM QUE NÃO VIVE DA GLÓRIA DO PASSADO”, nova peça da Cia. Espaço em BRANCO, dirigida por João de Ricardo, e sai impressionado. Uma espetáculo para quem gosta de fazer e assistir teatro, uma proposta ousada, uma experiência teatral cativante. Não que o espetáculo seja perfeito ou não suscite polêmica. Muitos, talvez, rejeitem a estética e o conteúdo do trabalho. Outros vão adorar de paixão. O verdadeiro teatro é este mesmo, o que não deixa o espectador indiferente na cadeira, o que desperta entusiasmo e controvérsia, gente falando muito bem, gente abominando completamente. Salvo engano, foi o que aconteceu durante a primeira temporada.
Eu mesmo, antes de assistir a peça, já ouvira alguns comentários ácidos sobre o trabalho, gente indignada com o resultado cênico da experiência pilotada por João. Depois do espetáculo, ao cumprimentá-lo, senti que ele estava bagunçado com algumas manifestações violentamente contrarias. Não devia, pois há razões para isso, na minha opinião. Algumas características da cidade explicam parcialmente o repúdio a um trabalho muito sério e bem-vindo.
Porto Alegre é uma cidade conservadora. Com exceções de praxe, claro, gente que faz valer a pena viver aqui, parece que sempre estão nos cobrando atestado de bons antecedentes, enquadramento aos costumes médios do lugar. Sobressair na massa, parece, é ofensa pessoal. E nenhum teatro, nenhuma manifestação cultural está imune ao local onde é gerado. Há poucos dias, perplexo, acompanhei uma série de invectivas contra Nei Lisboa, por suas posturas em relação ao ranço na musica folclórica gaúcha. Caíram de pau em cima dele. E agora, por motivos confluentes, querem destruir o trabalho do João. Eu, que tento assistir o maior numero possível de espetáculos locais, posso garantir que, atualmente, há uma grande conformismo cênico norteando nossas estréias. Espetáculos que flertam descaradamente com a linguagem da televisão, a retirada estratégica de uma geração que durante muitos anos alimentou nossas temporadas com propostas provocantes, uma nova geração que, por isso mesmo, por ser nova, ainda procura espaço e afirmação – tudo isso, paradoxalmente, desemboca em alguns artistas transbordantes e inquietos, pois esses continuam a surgir, graças a Deus! João de Ricardo é o melhor exemplo do que eu falo. Há nele uma ânsia legítima de procurar sua identidade cênica, uma alma e artista inconformado com a caretice que marca nosso tempo, um excesso de quem ainda não domina completamente as ferramentas de sua criação teatral. Tudo isso não obscurece nem invalida sua trajetória, João é talentosíssimo diretor de teatro, o nome mais importante surgido em sua geração.
A cidade ainda vai ouvir falar muito dele. Muitos espetáculos ainda vão dar o que falar, encontrar resistência e narizes torcidos. Tomara que João não canse nem desista.  Tomara que compreenda  que todos os verdadeiros talentos, no seu tempo, pagam um preco alto para firmar sua personalidade e seu trabalho. Elis Regina, para mim a maior cantora brasileira de todos os tempos, durante anos foi acusada pelos críticos de ser uma cantora “fria”. Logo ela, a mais emocional das nossas estrelas. E muitos gaúchos adoravam falar mal de Elis, coisas estapafúrdias,  maledicências de todo tipo. Eu ficava doido com isso, queria chutar o balde e as canelas dessa gente. Com a devida ressalva de que sei muito bem a diferença entre um e outro, é o que sempre acontece quando um nome começa a se impor na cena local.
O escorpião porto-alegrense tem um veneno abundante, é poderoso, mas o tempo é senhor da razão – todos sabemos. E é na perspectiva do tempo que o trabalho do João irá se impor e se firmar. Muitos artistas promissores começam a se repetir, perdem o fôlego, vendem a alma ao diabo. Mas aposto que o caminho de João é outro, é o caminho daqueles que vieram para ficar e contribuir para alavancar nosso gosto e depuração. Oxalá!

Luciano Alabarse
Diretor de Teatro e Coordenador Geral do Festival Internacional Porto Alegre em Cena
Jornal Usina do Porto


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