quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Artigo sobre hipertexto e o trabalho da Cia. Espaço em BRANCO que será apresentado no próximo congresso da ABRACE - Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas


A imagem no teatro: considerações interdisciplinares do olhar e do sentir

Ângela Francisca Almeida de Oliveira
Mestre em Artes Cênicas - PPGAC/UFRGS
GT Teorias do espetáculo e da recepção
Comunicação oral

Resumo: Este artigo propõe reflexões sobre a imagem no teatro, suas especificidades e paradoxais implicações no contexto de espetáculos de linguagem híbrida de encenação. Através da ampla conceituação de imagem, abordaremos, sob a perspectiva da recepção, a concretização imagética no teatro em relação aos demais campos da arte. Traçaremos paralelos com o auxílio de teorias da percepção e do efetio estético, textos críticos e filosóficos, envolvendo, também, estudos teóricos representativos nas áreas do cinema e da literatura.

Palavras-chave: imagem, recepção, interdisciplinariedade, encenação
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A comunicação que apresento traz questionamentos suscitados a partir de minha participação na pesquisa Educação do olhar e formação ético-estética: cinema e juventude, sobre cinema e formação de estudantes de pedagogia, realizada na Faculdade de Educação da UFRGS, com orientação da professora Drª Rosa Maria Bueno Fischer. Ao estudar a experiência estética propiciada pelo cinema e as implicações específicas da imagem cinematográfica, me ocorreu a importância de analisar cuidadosamente a relação que ela mantém com o teatro feito nos dias de hoje e como é possível certa cumplicidade entre as imagens imensas, registradas e veiculadas em mídia, e a imagem táctil da cena teatral, com o corpo dos atores e os objetos dispostos no palco.
Na cena teatral porto-alegrense, há uma companhia que produz espetáculos dentro do que se pode chamar de “linguagem híbrida de encenação” e cujo último trabalho acompanhei de perto. A Cia. Espaço em Branco, dirigida por João de Ricardo, existe há cinco anos e, embora seja considerada uma companhia jovem, apresenta intensa investigação quanto ao desenvolvimento de uma linguagem própria. Seu trabalho mais recente, Homem que não vive da glória do passado, apresentado entre março e abril deste ano, faz um mergulho na experimentação estética de linguagens não-teatrais, apropriando-as e integrando-as à cena.
O ponto específico que pretendo abordar aqui é a questão da imagem nesse trabalho – com projeções constantes no conjunto do acontecimento ao vivo. A encenação provoca a existência de uma imagem híbrida, como seu processo criativo, levada ao espectador pela experiência da simultaneidade com que mídia e corpo são apresentados aos sentidos. O espetáculo instiga a reflexão ao propiciar a impossiblidade de leitura separada das imagens que, concomitantes, constituem existência una. Estamos diante de várias camadas de imagens que se apresentam através da imagem duplicada do performer, em cenas gravadas previamente e veiculadas em tamanho cinematográfico; das imagens-ambiente criadas pelo grupo; das imagens publicitárias e televisivas, apropriadas e incorporadas ao discurso visual; das imagens literárias, desveladas nos trechos de narrativa; das imagens sonoras, que se aliam às demais e fortalecem de maneira significativa o impacto do espetáculo na plateia; mas a especificidade dessa junção, e o que a torna importante para análise, é que ela se dá em imagens “linkadas” em um grande hipertexto, conforme a perspectiva de Pierre Lévy (1993).
O que se efetiva é uma espécie de “hipercena”, que convoca os sentidos e o olhar do espectador e na qual visualmente se oferecem a imagem cinematográfica das grandes dimensões – manipulada pela câmera e pelos processos de edição – e a imagem do acontecimento performativo do palco – ao vivo e táctil. No entanto, sob a perspectiva da experiência do espectador, elas não se articulam como duas estranhas, mas como cúmplices. Da mesma forma, o espectador lida com uma camada visual que é da ordem da imagem subjetiva e que se nutre do visível, dado ao olhar, mas também da interferência das imagens não visuais, como as de caráter sonoro – recorrentes ao longo da encenação. O que passa pela percepção e pela experiência daqueles que estão na plateia e participam do encontro é uma teia de iconografias, simbologias e significados que se unem em favor da experiência perceptiva e, efetivamente, constituem o espetáculo. Trata-se de uma existência impura, mas única e instransferível.
A peça partiu de um roteiro que balizou a performance e deu-lhe um mote, mas que, pela forma como ela é construída e pela intensidade das imagens que desenvolve, convoca o público a desapegar-se da narrativa e deixar-se levar pela experiência da apresentação. Há uma desconstrução do enredo no despejo de referências que aludem à situação original ou a metaforizam e, com os diversos recursos utilizados, re-contextualizam e ampliam o discurso a cada nova cena. A narrativa, que poderia falar de um homem que após a morte de todas as mulheres do mundo em uma catástrofe inexplicada precisa continuar vivendo, expande-se na experiência do público, com as impressões imagéticas da encenação.
O espetáculo começa como uma conversa informal, ativando no público a vontade de participação. Os espectadores são chamados pelo nome, que foi previamente grafado em um crachá na bilheteria. É de nome para nome que a relação entre os participantes se efetiva. Os significados dos nomes são evocados e aqueles que o sabem podem dizê-lo ao grande grupo, mas não de forma impune. Além de o “diretor-performer-anfitrião” revelar o peso do nome que carrega, os espectadores que fazem o mesmo – sem perceber e antes de adentrar o espaço da apresentação – revestem-se das imagens que os nominam e não são mais percebidos da mesma forma. Assim como a visão “hipercênica” do espetáculo, os indivíduos que dele participam são chamados a perceber em si hipertextos – que os conectam ao que está além de seu próprio corpo, mas que também são parte de sua existência e da imagem exposta de si mesmos.
Homem que não vive da glória do passado efetiva-se ao imprimir no espectador imagens de opressão e desespero, pois, após a conversa amigável no saguão do teatro, desdobra-se uma viagem ao apocalipse e ao caos. Há, então, um desconcerto que vai do ambiente aparentemente cotidiano à performação do sacrifício. Uma imersão na animalidade da dor e no questionamento do homem como animal racional, em imagens visuais (crucificação) e acústicas (vozes de hienas, cães, corujas, grilos e camelos) sobrepostas. A visão do homem que se amarra com fita adesiva transparente é aderida à trilha sonora que mescla a narração do apocalipse, por Cid Moreira, com os sons animalescos há pouco citados.
Essa característica de imagem visual e sonora, identificada ao longo da tradição teatral de texto e cena, torna-se complexa ao incorporar à imagem viva os recursos tecnológicos diversos: vídeo, microfone, amplificadores, pedais e mesa de som com efeitos. Esse conjunto de mídias é parte fundamental nesse trabalho da Cia. Espaço em Branco, sobrecarregando o aparelho sensório e invadindo o corpo do espectador. Ainda que se fale da “frieza midiática”, apontada por diversos teóricos do teatro, como Hans-Thies Lehmann (2008), nesse espetáculo da companhia o que se vê é a mídia incorporada ao material orgânico e que permite, junto a ele, uma existência sem rivalidade. Um espetáculo “cyborg” que não extingue em si nem sua humanidade, nem sua tecnicidade. Espetáculo dos dias de hoje, Homem que não vive da glória do passado revela a evidência do artefato gerador de subjetividade (tecnologia da inteligência, conforme Lévy) e sua inevitável representabilidade.
Um distanciamento é perceptível em contrapartida à proximidade corporal/sensorial dessa experiência com imagens midiáticas: a atividade intelectual parece interferida a cada novo episódio da encenação, que raramente retoma elementos anteriores. Mesmo quando, por ventura, há o retorno de algo já visto, essa reaparição se dá em um contexto tão diferente que o algo praticamente se identifica com outra coisa. São sempre novas imagens – literárias, visuais, sonoras – em sobreposição, reorganização, desorganização, fragmentação, pulverização – o que dificulta o reconhecimento de sentido. Parece-me que o sentido racional pode, inclusive, nem ser acionado e o espetáculo pode reverberar por vias “inconscientes” junto ao espectador. Entretanto, se há racionalização e construção de sentido intelectual, essas de fato ocorrem após a encenação, talvez um bom tempo depois dela, quando o espectador conseguir acalmar os sentidos superestimulados e passar a pensar sobre o que vivenciou – o que viu e sentiu. É de olhar e sentir que falamos, pois o olhar capta a visualidade marcante aliada à sonoridade, ao texto e à estrutura desconcertante da peça, numa vivência marcada pela sensação do mundo – com suas máquinas e imagens –, que é internalizado.
Conforme Picon-Vallin (2006), o teatro se alimenta há muito tempo das técnicas e imagens cinematográficas – trabalhadas basicamente em noções de montagem, enquadramento e movimentação de equipamentos – e também de todos os avanços tecnológicos interessantes à sua realização – exemplo claro com os recursos de iluminação elétrica, hoje indispensáveis para espaços fechados. E, se agora há desconfiança quanto ao caráter teatral de novos recursos, a caminhada deles junto à cena faz parte de um processo contínuo, atualizado a cada dia. O teatro feito hoje se relaciona com os aspectos da vida em nossos dias e se localiza neste tempo histórico – de sociedade “globalizada” e navegadores de internet.
É fato a complexidade do que se apresenta e a demanda de análise para um objeto ainda novo. Ao buscar referêcias teóricas, me deparei com a postura ainda cautelosa com que alguns teatrólogos tratam a imagem midiática. Assim como foi possível perceber uma divergência entre teóricos do teatro e do cinema que, como Ismail Xavier (2008), já habituado ao aparato técnico, não encontra na imagem das mídias um dado completo e fechado na objetividade, mas algo de existência profunda e exigente que se opõe ao clichê de automatismos perceptivos. Acredito que o diálogo entre as diferentes áreas possa ser estimulado, gerando uma real reflexão conjunta entre as artes.
O teatro da Cia. Espaço em Branco é herdeiro da tradição das vanguardas e realiza com as técnicas atuais o que, no início do século XX, diretores e artistas de teatro tentaram realizar da forma que cabia a seu tempo. As novas tecnologias facilitaram a experimentação com a imagem e propiciaram ao teatro a inserção de recursos importantes. Não houve no caso analisado mera ilustração com as projeções, tampouco os recursos de mídia foram elencados na sucessão de “efeitos especiais”. Houve o trabalho atual de explorar as novas tecnologias, conviver com elas, torná-las orgânicas à cena – entendendo que delas também nos constituímos e que tudo o que nos diz respeito é tema para o teatro.


Referências:

ARTAUD, Antonin. Linguagem e vida. Org. Jacó Guinsburg, Silvia Fernandes e Antônio Macedo Neto. São Paulo: Perspectiva, 2004.
COHEN, Renato. Work in progress na cena contemporânea: criação, encenação e recepção. São Paulo: Perspectiva, 1998.
GOLDBERG, Roselee. A arte da performance: do futurismo ao presente. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
FOUCAULT, Michael. O pensamento exterior. In: Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema. Ditos & Escritos III.  Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001.
LEVY, Pierre. As tecnologias da inteligência: o futuro do pensamento na era da informática. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996.
LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. São Paulo: Cosac Naify Edições, 2007.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
PICON-VALLIN, Béatrice. Os novos desafios da imagem e do som para o ator. Em direção a um "super-ator"?. In: Folhetim, nº 21, p. 07-23. Rio de Janeiro: Teatro do pequeno gesto, 2005.
________. A arte do teatro: entre tradição e vanguarda / Meyerhold e a cena contemporânea. Org. Fátima Saadi. Rio de Janeiro: Teatro do pequeno gesto, 2006.
XAVIER, Ismail. Um cinema que “educa”  é  um cinema que faz pensar. Entrevista. Educação & Realidade, FACED/UFRGS, V. 33, n. 1, 2008, p. 13-20.
________. (Org.). A Experiência do Cinema: antologia. Rio de Janeiro: Graal, Embrafilmes, 2003.
________. O Discurso Cinematográfico: a opacidade e a transparência. São Paulo: Paz e Terra, 2005.

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