Melhor começar falando das glórias do passado da Espaço em BRANCO. O grupo ganhou visibilidade em 2005, com a montagem Extinção, que desde já apresentava suas armas: atuações naturalistas revezando-se com movimentos estilizados, uso massivo de multimídia, busca de dramaturgia contemporânea. No ano seguinte, Andy/Edie trouxe a dramaturgia de Diones Camargo, dissecando a vida de Andy Warhol e da socialite Edie Sedgwick, signos pop em cena e filmagens à vista do público. E trouxe ainda, importante, um público novo para o teatro: gente que não vive da glória do passado do teatro, que enquadra o drama como algo que não dá conta dos problemas e da desfragmentação do nosso presente que tem velocidade de futuro.
Teresa e o Aquário, no ano passado, foi a consolidação das ideias da Cia: a intervenção multimídia radicalizou-se ainda mais, o diretor João de Ricardo subiu ao palco e virou mais um personagem, a iluminação foi para as mãos dos atores, a música era criada ao vivo interagindo com as atuações. A Cia Espaço em BRANCO tem ainda no repertório Alice e Em Trânsito, mas não as assisti ainda (estarão em cartaz também esta semana, com entrada franca – confira no link).
Homem que Não Vive da Glória do Passado, eu assisti. Ou melhor, presenciei, porque é impossível o espectador ficar distante do que é encenado, seja para bem, ou para mal. O espetáculo, baseado em um conto de Bruno Gularte Barreto (diretor ao lado de João de Ricardo), parece um ajuste de contas entre um artista e seu talento. Não é simplesmente a crônica de um crise criativa – é a dissecação inclemente de um criador (ou de um grupo criador) às vistas (e ao tato, e ao olfato, e aos ouvidos) do público.
O início de Homem… é revelador: João de Ricardo, que interpreta (ou melhor seria dizer vive?) o protagonista, leva parte do público para as coxias do teatro, discutindo seu processo de criação, desmistificando o palco, humanizando o criador e deixando claras as hesitações e encruzilhadas estéticas que marcam o espetáculo. O resto do público ocupa as poltronas da sala, e assiste ao que acontece nos bastidores por meio de uma projeção. Ao cabo de uns 30 minutos, termina o que se chamou de prólogo – e tem início um ritual que define trabalho, momento, proposta e ideal da Cia Espaço em BRANCO. A iluminadora e atriz Carina Sehn começa a chamar nominalmente quem está no palco para sentar nas poltronas. Mas o faz dizendo nome, data de nascimento, e definindo a data da morte de cada um como a do dia do espetáculo. No meu caso, nasci em 3 de julho de 1958 e morri em 19 de março de 2010.
É preto no BRANCO: a Cia defende que o teatro do passado está morto, mas não só em termos de formas dramatúrgicas e de encenação tradicionais e consagradas. A leitura é mais cruel e drástica: o teatro da Cia Espaço em BRANCO morreu, o teatro que cada espectador conhece morreu. Cada noite de apresentação é um ciclo completo de vida, que termina com a morte da forma que esteve em cena. Isso parece claro durante a parte mais “tradicional” de Homem que Não Vive da Glória do Passado, que mostra as angústias de um personagem que está trancado em um apartamento e descobre que todas as mulheres do undo morreram;. Não lhe resta muito mais o que fazer senão discutir quais seriam as razões de seu “sucesso”, usando a ironia como ferramenta maior. Aqui e ali, aparecem imagens e até trechos de cenas de algumas montagens anteriores da em BRANCO, e tudo soa como um inventário do que foi feito e desfeito até agora.
O grau de dispersão, estranhamento e surpresa do que está em cena é tal que é difícil realmente enquadrar a montagem como um espetáculo tradicional. Apesar de reforçar elementos já característicos do grupo, como o uso inventivo de música e projeções sendo criadas em tempo real, de por vezes assomar um humor irreverente, o que parece estar em cena é antes o processo de criação da companhia do que mesmo o resultado desse processo.
Como que propondo o fim da ritualidade que define o que está no palco como a culminância e o resultado final de um processo criativo, João, Bruno e Sissi Venturin parecem defender que o palco é uma instância a mais. Humildes, revelam ao público suas vacilações. Arrogantes, impõem um espetáculo que se ergue sobre o não-espetáculo.
Ao abrir mão de ferramentas dramáticas que poderiam garantir catarse ou mera satisfação estética na plateia, Homem que Não Vive das Glórias do Passado termina deixando no espectador muito mais uma inquietação intelectual que emocional. Seria esta a forma mais eficiente de balançar as crenças do públicos? A Cia Espaço em BRANCO subverte a posição passiva do artista, a quem caberia por obrigação garantir satisfação a seu público. Em Homem..., o público sai incorporando as dúvidas dos artistas. Quem está preparado para isso? Por outro lado, o que não mata, engorda. E nada como uma boa terapia de choque estético.
Pergunto se Homem que Nâo Vive da Glória do Passado é um instantâneo, fotografia mais em preto que em branco do estágio atual do grupo, ou se é um rumo que o coletivo deseja assumir, contestando a própria significação do que seja espetáculo, ao menos em sua visão mais tradicional. Prefiro acreditar, e até torcer, para que a primeira alternativa seja a escolha correta, especialmente se tiver uma (ou duas, ou às vezes derramar o saleiro mesmo) pitadinha da segunda. Como já dizia Peter Brook, elogiando desde o teatro de variedades até as montagens estilo cabeçolândia, de que vale ser o tempo todo profundo, ou o tempo todo raso? E nem vale ficar a um tipo só de teatro – que mesmo o que é por nós criado pode nos aprisionar.
Brook também afirma que o teatro está morto, no sentido de que cada encenação está sujeita a seu tempo, seus artífices, suas intenções, seu ambiente. Nesse ponto, a Cia Espaço em BRANCO exibe sua maior qualidade: paralelamente ao esforço de construir uma linguagem e um estilo pessoais, mantém acesa a chama do autoquestionamento, sem medo de incorporar os elementos tempo e morte a seu trabalho. Não se cresce sem crises, e é uma dessas que o grupo está compartilhando – em cena – com o público.
ACESSE: RELATO MENDONÇA
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