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caligrafia na peleConjugando o Presente
Às vesperas de completar 45 anos tenho me posicionado com certo deleite em descobrir, ângulo de visão que reaprendo com as crianças, e o qual me reposiciona diariamente .
Mas não é sobre isto que quero discorrer aqui. Ou é? Bem, na dúvida prefiro maquiar minha escrita e assumir que não, não quero falar de velhos ou novos, valores incrustados e valores descolados. Façamos de conta que vou apenas discorrer sobre uma peça, que anda incomodando, ou seria "desacomodando" alguns pensamentos enrijecidos? Bem, eu não tenho a resposta. Se você a tiver, peço-lhe que compartilhe comigo. O que eu tenho, e que faço bom uso, é de um desejo permanente de renovação de olhar, pensar, agir, respirar. Pensemos juntos, então, de que forma podemos fazê-lo num mundo cheio de fórmulas, gavetas e rótulos. Creio, e dedico-me intensamente a proliferar esse tipo de pensamento à Infância que, o que nos move nesse concreto todo é a Arte em todos os seus desdobramentos. Diferente da Sociedade... - eu tenho certo pavor de fazer citações, pois sempre penso que estou querendo bancar o intelectual que não sou e não desejo ser -, mas eu ia dizer Sociedade Líquida, Homem Líquido, e outros comportamentos líquidos que escorregam por entre os nossos dedos todos os dias, em oposição à Sociedade do espetáculo, que roubou egoísta e egoicamente do palco o espaço da encenação, é compromisso da Arte, e de quem se sente inflamado por ela, sacudir as velhas estruturas a fim de provocar, que seja, repúdio. Costumamos ir ao teatro, ir ao show, abrir um livro sempre esperando aquele mesmo sentimento confortável do que se supõe alívio, exacerbação, catarse, sem percebermos, por vezes, que tudo isso pode residir exatamente no desconforto que o livro, o show, ou a peça teatral nos proporciona. Falta-nos como artistas, creio, um pouco de abertura a fim de nos percebermos, nos reconhecermos ou desconhecermos na expressão artística do outro, com a humildade de nos compreendermos ignorantes, de nos compreendermos desconhecedores de tudo o quanto há para se conhecer ou saber.
Eu costumo dizer para as crianças com quem falo há treze anos de estrada, ar, jegue, carroça em minhas inúmeras visitas à escolas e feiras de livros do Brasil, que morrerei ignorante. Morrerei, sim. E tenho imenso prazer em reconhecer isso. Assumo, como simples humano que sou, minha incapacidade de absorver tanto conhecimento que o mundo dispõe. E, crer nessa ignorância pode nos impelir no movimento ao novo, ao diferente, suponho apenas.
Estou aqui discorrendo sobre o novo. E sobre o antigo, claro. Mas desviei do foco. Declarei que não o faria. Essa prolixa introdução apenas se presta como caliça para falar de um espetáculo que me perturbou significativamente. E o nome não poderia ser mais apropriado: Homem que não vive da glória do passado. Trata-se de um dos mais recentes trabalhos da Cia Espaço em Branco - logo em seguida estrearam Alice, ao qual ainda não tive a oportunidade de assistir. Não escrevo aqui com o intuito de dizer que o espetáculo esteja em sua forma mais perfeita. Mas de onde saiu a ideia de perfeição? Da educação judaico-cristã? Ora, a perfeição pode residir naquilo que nos corrói, nos devora, nos desajeita em cima daquele velho caminhão cheio de melancias, lembram?
O que posto aqui é apenas uma impressão de uma pessoa na condição de plateia comum, pois esse exercício de humildade tem sido a tônica do meu comportamento. Reflexo dos 45 anos que se aproximam? Não creio. Suponho ser um jeito mais generoso de querer me comportar ao ver os esforços de um, dois ou mais artistas na busca de algo que surpreenda, que nos tire desse marasmo e desse lirismo puído, dessa hipocrisia de lamber sapatos usados que nunca nos levam a outro caminhar e se julgam intocáveis em seus postos de poder de onde dizem e, supostamente, tem a intenção de formar opiniões usando sempre a mesma lente, do monóculo eu diria.
O espetáculo Homem que não vive da glória do passado é anárquico, por isso estimulante; é fragmentado, por isso irrequieto; é frágil à unidade, por isso curioso, mas ponho-me longe de acreditar que não estejamos diante de um experimento - e para isso devem servir os financiamentos, patrocínios e fomentos, caso contrário teremos uma Arte regulada, fiscalizada e engavetada - que tem em seu propósito genuíno uma divertida sacudida na cena teatral produzida em Porto Alegre. Isso era de se profetizar desde Andy e Eddie, outro instigante espetáculo da mesma Cia.
Como veem ultimamente estou rejeitando pensamentos paralelos. Ando experimentando o oblíquo. Digamos que falar de si mesmo, hoje, num mundo que se revestiu de uma coletividade sufocante em nome dos números eleitoreiros, faz com que Homem que não vive da gloria do passado seja um suspiro dos artistas autorais e que não se rendem a esse maquiavelismo da atual sociedade que nos quer engavetados numa coisa só, massa de manobra frente aos financiamentos distribuídos à coletividade permanente. Mesma coisa, dizia minha avó, é um monte de japonês pelado em cima de um caminhão. Vovó não tinha razão, mas vovó já não vive mais neste mundo. E eu não vivo a buscar a glória do passado. Nem a dela e muito menos a minha, por isso aplaudo João de Ricardo, Bruno Gularte Barreto, Carina Sehn, Sissi Venturin e toda a equipe do espetáculo, por me sacudirem, desacomodarem, me fazerem rir, pensar, suspirar e constatar que a vida não é, de fato, perfeita. E que muitos de nós, em silêncio, sofremos das mesmas dores impostas por este mundo em que, por vezes, sequer o palco permite ou reconhece o nosso grito.
Comecei falando dos limites, da linha tênue. Do receio. Meu único receio é que as Bárbaras Heliodoras da vida se multipliquem. Que elas nasçam, sim, muitas, mas que sejam mais compreensivas com a possibilidade de experimentar, afinal, para isso fazemos Arte, para isto servem os patrocínios e os financiamentos, diferente daquilo que aporta em fórmulas seguras e repetidas. E tem uma velha citação do Nietzsche - impossível não citá-lo na minha pretensa pseudo-intelectualidade a que rechaço - e que ora recordo: Quanto mais nos elevamos, menores parecemos aos olhos daqueles que não sabem voar.
Sabe, ainda estou a pensar que o Nietzsche, lá no passado, estava certo, viu. Mas também não quero acreditar que essa seja uma verdade absoluta.
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