segunda-feira, 29 de março de 2010

Para quem eu vou dar ouvidos? Para quem eu sempre ouvi:

O difícil é encontrar de fato o seu lugar e restabelecer a comunicação consigo mesmo. O
todo está em certa floculação das coisas, no agrupamento de toda essa pedraria mental em
torno de um ponto que falta justamente encontrar.
E eu, eis o que penso do pensamento:

A INSPIRAÇÃO CERTAMENTE EXISTE.


E há um ponto fosforescente onde toda a realidade se reencontra, porém mudada,
metamorfoseada — e pelo quê? — um ponto de mágica utilização das coisas. E eu creio
nos aerólitos mentais, em cosmogonias individuais.
Toda a escritura é uma porcaria.
As pessoas que saem do vago para tentar precisar seja o que for do que se passa em seu
pensamento são porcos.
Todo o mundo literário é porco, e especialmente o desse tempo.
Todos aqueles que têm pontos de referência no espírito, quero dizer, de um certo lado da
cabeça, em bem localizados embasamentos de seus cérebros, todos aqueles que são mestres
em sua língua, todos aqueles para quem as palavras tem um sentido, todos aqueles para
quem existem altitudes na alma, e correntes de pensamento, aqueles que são o espírito da
época, e que nomearam essas correntes de pensamento, eu penso em suas tarefas precisas, e
nesse rangido de autômato que espalha aos quatro ventos seu espírito, — são porcos.
Aqueles para quem certas palavras têm sentido, e certas maneiras de ser, aqueles que
mantêm tão bem os modes afetados, aqueles para quem os sentimentos têm classes e que
discutem sobre um grau qualquer de suas hilariantes classificações, aqueles que crêem
ainda em "termos", aqueles que remoem ideologias que ganham espaço na época, aqueles
cujas mulheres falam tão bem e também e que falam das correntes da época, aqueles que
crêem ainda numa orientação do espírito, aqueles que seguem caminhos, que agitam
nomes, que fazem bradar as páginas dos livros — são os piores porcos.
Você é bem gratuito, moço!
Não, eu penso em críticos barbudos.
Eu já lhes disse: nada de obras, nada de língua, nada de palavra, nada de espírito, nada.]
Nada, exceto um belo Pesa-nervos.

Uma espécie de estação incompreensível e bem no meio de tudo no espírito.
E não esperem que eu lhes nomeie esse tudo, que eu lhes diga em quantas partes ele se
divide, que eu lhes diga seu peso, que eu ande, que eu me ponha a discutir sobre esse tudo,
e que, discutindo, eu me perca e me ponha assim, sem perceber, a PENSAR — e que ele se
ilumine, que ele viva, que ele se enfeite de uma multidão de palavras, todas bem cobertas
de sentido, todas diversas, e capazes de expor muito bem todas as atitudes, todas as nuanças
de um pensamento muito sensível e penetrante.
Ah, esses estados que nunca são nomeados, essas situações eminentes da alma, ah, esses
intervalos de espírito, ah, esses minúsculos malogros que são o pão de cada dia de minhas
horas, ah, esse povo formigante de dados — são sempre as mesmas palavras que me
servem e na verdade eu não pareço mexer muito em meu pensamento, mas eu mexo nele
muito mais do que vocês na realidade, barbas de asnos, porcos pertinentes, mestres do falso
verbo, arranjadores de retratos, folhetinistas, rasteiros, ervateiros, entomologistas, praga de
minha língua.

Eu lhes disse que não tenho mais minha língua, mas isto não é razão para que vocês
persistam, para que vocês se obstinem na língua.
Vamos, eu serei compreendido dentro de dez anos pelas pessoas que farão o que vocês
fazem hoje. Então meus gêiseres serão conhecidos, meus gelos serão vistos, o modo de
desnaturar meus venenos estará aprendido, meus jogos d’alma estarão descobertos. Então
meus cabelos estarão sepultos na cal, todas minhas veias mentais, então se perceberá meu
bestiário e minha mística terá se tornado um chapéu. Então ver-se-á fumegar as junturas das
pedras, e arborescentes buquês de olhos mentais se cristalizarão em glossários, então verse-
ão cair aerólitos de pedra, então ver-se-ão cordas, então se compreenderá a geometria
sem espaços, e se aprenderá o que é a configuração do espírito, e se compreenderá como eu
perdi o espírito.
Então se compreenderá por que meu espírito não está aí, então ver-se-ão todas as línguas
estancar, todos os espíritos secar, todas as línguas encorrear, as figuras humanas se
achatarão, se desinflarão, como que aspiradas por ventosas secantes, e essa lubrificante
membrana continuará a flutuar no ar, esta membrana lubrificante e cáustica, esta membrana
de duas espessuras, de múltiplos graus, de um infinito de lagartos, esta melancólica e vítrea
membrana, mas tão sensível, tão pertinente também, tão capaz de se multiplicar, de se
desdobrar, de se voltar com seu espelhamento de lagartos, de sentidos, de estupefacientes,
de irrigações penetrantes e virosas, então tudo isto será considerado certo, eu não terei mais
necessidade de falar.


ARTAUD>

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